As grandes mudanças na sociedade,
ainda quando se dão de forma silenciosa, podem ser sentidas através da mudança
do imaginário e da mentalidade social. As mudanças nos significados de algumas
palavras, do uso que a elas são empregados e até mesmo o surgimento de palavras
novas são um exemplo. Em Homenagem a Catalunha, George Orwell narra que durante
a Revolução Espanhola de 1936, quando as fábricas e os campos foram tomadas
pelos trabalhadores e passaram a funcionar sobre um sistema de autogestão operária,
as formas servis e cerimoniosas de tratamento desapareceram e ninguém mais
dizia “Señor”, ou “Don”, ou mesmo “Usted”, e todos se chamavam de “Camarada” e
“Tu”, dizendo “Salud!” ao invés de “Buenos dias”. Orwell conta que até mesmo o
comandante da tropa republicana em que lutava, nas fileiras do POUM (Partido
Obrero de Unificación Marxista), certa vez repreendeu um soldado por tê-lo
chamado de Senhor Comandante, e não de Camarada, pois todos eram igualmente
humanos, e deviam executar suas tarefas por responsabilidade e consciência, e
não por obrigação e servidão.
Até,
pelo menos, 1964, sabemos que a palavra “Revolução” tinha uma conotação
positiva, e uma expressão evidente disto foi sua adoção pelos militares
brasileiros para batizar e dar ares de justificativa democrática ao golpe de 1
de abril. Hoje, pouco a pouco “Revolução” toma um significado negativo,
remetendo a crise política, invasão e destruição da propriedade privada,
violência social, enfim, como se fosse um sinônimo de “Caos”. O próprio mito em
que se constituía a palavra “Revolução”, ou seja, o mito da emancipação e
libertação humana, vem sendo substituído por outros mitos. Um sinal disso,
talvez seja a tradução brasileira que recebeu o filme norte-americano Thirteen
Days, baseado no livro de mesmo nome escrito por Robert Kennedy (irmão de John
F. Kennedy) em 1968, que é “Treze dias que abalaram o mundo”, uma alusão clara
ao “Dez dias que abalaram o mundo” de John Reed. No livro de Reed, a Revolução
Russa é apresentada como uma história épica onde a humanidade “assalta os
céus”, mostrando que o “impossível” é possível e a “utopia” é realizável. Em
“Treze dias que abalaram o mundo” a épica da emancipação humana é substituída
pela épica da possível destruição completa da humanidade, ou seja, a crise dos
mísseis cubanos. Trocamos “emancipação da humanidade” por “destruição da humanidade”,
e então vendemos isso como espetáculo a ser consumido em todas as casas. Por
trás destra troca, há outra, que é a troca da “Revolução” pela “Guerra”.
Já
não estamos na época das ditaduras militares, mas é interessante notar o cunho
militar inserido em muitas das “imagens que consumimos”. Todos aqueles filmes
hollywoodianos colocando Hitler e seu nazismo como o inimigo mais poderoso e
fenomenal de todos, não acaba de alguma forma, fazendo propaganda do mesmo? Por
que os heróis dos filmes, quando “reais”, são na maioria das vezes “heróis de
guerra”? Mesmo os heróis fictícios, muitas vezes, são ao mesmo tempo, heróis de
guerra, de forma que Capitão América e Wolverine constituem dois exemplos. Nos
novos filmes do Batman, as Empresas Wayne são empresas de produtos bélicos, e o
próprio Batmóvel é um tanque de guerra super-desenvolvido em estágio
experimental. Também é sintomático que o livro “A Arte da Guerra” de Sun Tzu,
venha hoje com um subtítulo propagandístico dizendo algo como “aprenda a ser
dar bem na vida empresarial”, o que significa deixar claro que nossa vida
econômica é uma guerra.
O
último filme do Batman, “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, torna-se emblemático
na leitura da construção desse imaginário atual. No filme, o herói burguês
Bruce Wayne, juntamente de toda a polícia de Gothan City, trava uma batalha
contra Bane e sua multidão de bandidos. A polícia, subproduto do exército,
carrega hoje uma simbologia de proteção e de ordem, como se fosse o único grupo
na sociedade capaz de “parar o caos”. Não é raro, ouvir da boca de qualquer
homem de meia idade, o apelo para que o governo ofereça mais “segurança”.
Porém, “mais segurança”contra quem? Contra as tropas de Bane da vida real, ou
seja, aqueles sujeitos “sujos e fedorentos” jogados pelas calçadas, que
normalmente as pessoas de classe média ou superior fingem que não os vêem
quando passam perto, mas não raro, sentem medo, e isso porque sabem que eles
são em potencial um recipiente de crítica irracional a propriedade privada: o
roubo (pergunto-me como também não sentem medo de ter uma placa pregada na
frente de suas casas dizendo “esta residência é monitorada 24 horas”).
Interessante notar que em “Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, essa
camada da população é o sujeito de uma revolução social, cujo Bane é porta-voz,
convocando o povo a tomar o poder e julgando e condenando os antes ricos e
poderosos pelos séculos de opressão e exploração.
A mudança no imaginário social para um ponto
de vista conservador fica claro nesse ponto: No filme, a Revolução é um
sinônimo de caos onde as ruas são tomadas pela vilania e o terror, enquanto a
violência controla a política. A classe média (vista no filme como uma espécie
de “verdadeiro povo”) tranca-se em casa e “espera a tormenta passar”, fazendo o
papel do “bom cidadão”, dócil e sempre dependendo das autoridades babás para
protegê-los, enquanto os responsáveis por sufocar a revolução de Bane e dos
excluídos e “restaurar a ordem” são os policiais, encabeçado pelo herói burguês
e bélico, Batman. A Gotham City de Bane,
deixa nostalgia da Comuna de Paris, da Espanha de 1936 e do Chile de Salvador
Allende.
Lucas Alexandre Andreto