quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Dos versos para os trovões


As grandes mudanças na sociedade, ainda quando se dão de forma silenciosa, podem ser sentidas através da mudança do imaginário e da mentalidade social. As mudanças nos significados de algumas palavras, do uso que a elas são empregados e até mesmo o surgimento de palavras novas são um exemplo. Em Homenagem a Catalunha, George Orwell narra que durante a Revolução Espanhola de 1936, quando as fábricas e os campos foram tomadas pelos trabalhadores e passaram a funcionar sobre um sistema de autogestão operária, as formas servis e cerimoniosas de tratamento desapareceram e ninguém mais dizia “Señor”, ou “Don”, ou mesmo “Usted”, e todos se chamavam de “Camarada” e “Tu”, dizendo “Salud!” ao invés de “Buenos dias”. Orwell conta que até mesmo o comandante da tropa republicana em que lutava, nas fileiras do POUM (Partido Obrero de Unificación Marxista), certa vez repreendeu um soldado por tê-lo chamado de Senhor Comandante, e não de Camarada, pois todos eram igualmente humanos, e deviam executar suas tarefas por responsabilidade e consciência, e não por obrigação e servidão.
            Até, pelo menos, 1964, sabemos que a palavra “Revolução” tinha uma conotação positiva, e uma expressão evidente disto foi sua adoção pelos militares brasileiros para batizar e dar ares de justificativa democrática ao golpe de 1 de abril. Hoje, pouco a pouco “Revolução” toma um significado negativo, remetendo a crise política, invasão e destruição da propriedade privada, violência social, enfim, como se fosse um sinônimo de “Caos”. O próprio mito em que se constituía a palavra “Revolução”, ou seja, o mito da emancipação e libertação humana, vem sendo substituído por outros mitos. Um sinal disso, talvez seja a tradução brasileira que recebeu o filme norte-americano Thirteen Days, baseado no livro de mesmo nome escrito por Robert Kennedy (irmão de John F. Kennedy) em 1968, que é “Treze dias que abalaram o mundo”, uma alusão clara ao “Dez dias que abalaram o mundo” de John Reed. No livro de Reed, a Revolução Russa é apresentada como uma história épica onde a humanidade “assalta os céus”, mostrando que o “impossível” é possível e a “utopia” é realizável. Em “Treze dias que abalaram o mundo” a épica da emancipação humana é substituída pela épica da possível destruição completa da humanidade, ou seja, a crise dos mísseis cubanos. Trocamos “emancipação da humanidade” por “destruição da humanidade”, e então vendemos isso como espetáculo a ser consumido em todas as casas. Por trás destra troca, há outra, que é a troca da “Revolução” pela “Guerra”.
            Já não estamos na época das ditaduras militares, mas é interessante notar o cunho militar inserido em muitas das “imagens que consumimos”. Todos aqueles filmes hollywoodianos colocando Hitler e seu nazismo como o inimigo mais poderoso e fenomenal de todos, não acaba de alguma forma, fazendo propaganda do mesmo? Por que os heróis dos filmes, quando “reais”, são na maioria das vezes “heróis de guerra”? Mesmo os heróis fictícios, muitas vezes, são ao mesmo tempo, heróis de guerra, de forma que Capitão América e Wolverine constituem dois exemplos. Nos novos filmes do Batman, as Empresas Wayne são empresas de produtos bélicos, e o próprio Batmóvel é um tanque de guerra super-desenvolvido em estágio experimental. Também é sintomático que o livro “A Arte da Guerra” de Sun Tzu, venha hoje com um subtítulo propagandístico dizendo algo como “aprenda a ser dar bem na vida empresarial”, o que significa deixar claro que nossa vida econômica é uma guerra.
            O último filme do Batman, “O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, torna-se emblemático na leitura da construção desse imaginário atual. No filme, o herói burguês Bruce Wayne, juntamente de toda a polícia de Gothan City, trava uma batalha contra Bane e sua multidão de bandidos. A polícia, subproduto do exército, carrega hoje uma simbologia de proteção e de ordem, como se fosse o único grupo na sociedade capaz de “parar o caos”. Não é raro, ouvir da boca de qualquer homem de meia idade, o apelo para que o governo ofereça mais “segurança”. Porém, “mais segurança”contra quem? Contra as tropas de Bane da vida real, ou seja, aqueles sujeitos “sujos e fedorentos” jogados pelas calçadas, que normalmente as pessoas de classe média ou superior fingem que não os vêem quando passam perto, mas não raro, sentem medo, e isso porque sabem que eles são em potencial um recipiente de crítica irracional a propriedade privada: o roubo (pergunto-me como também não sentem medo de ter uma placa pregada na frente de suas casas dizendo “esta residência é monitorada 24 horas”). Interessante notar que em “Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge”, essa camada da população é o sujeito de uma revolução social, cujo Bane é porta-voz, convocando o povo a tomar o poder e julgando e condenando os antes ricos e poderosos pelos séculos de opressão e exploração.
             A mudança no imaginário social para um ponto de vista conservador fica claro nesse ponto: No filme, a Revolução é um sinônimo de caos onde as ruas são tomadas pela vilania e o terror, enquanto a violência controla a política. A classe média (vista no filme como uma espécie de “verdadeiro povo”) tranca-se em casa e “espera a tormenta passar”, fazendo o papel do “bom cidadão”, dócil e sempre dependendo das autoridades babás para protegê-los, enquanto os responsáveis por sufocar a revolução de Bane e dos excluídos e “restaurar a ordem” são os policiais, encabeçado pelo herói burguês e bélico, Batman.  A Gotham City de Bane, deixa nostalgia da Comuna de Paris, da Espanha de 1936 e do Chile de Salvador Allende.

                                                                                                                  Lucas Alexandre Andreto

Os olhos dos pobres


Os olhos dos pobres - Charles Baudelaire




De Le Spleen de Paris (Os Pequenos Poemas em Prosa)

Quer saber por que a odeio hoje? Sem dúvida lhe será mais fácil compreendê-lo do que a mim explicá-lo; pois acho que você é o mais belo exemplo da impermeabilidade feminina que se possa encontrar.

Tínhamos passado juntos um longo dia, que a mim me pareceu curto. Tínhamos nos prometido que todos os nossos pensamentos seriam comuns, que nossas almas, daqui por diante, seriam uma só; sonho que nada tem de original, no fim das contas, salvo o fato de que, se os homens o sonharam, nenhum o realizou.

De noite, um pouco cansada, você quis se sentar num café novo na esquina de um bulevar novo, todo sujo ainda de entulho e já mostrando gloriosamente seus esplendores inacabados. O café resplandecia. O próprio gás disseminava ali todo o ardor de uma estréia e iluminava com todas as suas forças as paredes ofuscantes de brancura, as superfícies faiscantes dos espelhos, os ouros das madeiras e cornijas, os pajens de caras rechonchudas puxados por coleiras de cães, as damas rindo para o falcão em suas mãos, as ninfas e deusas portando frutos na cabeça, os patês e a caça, as Hebes e os Ganimedes estendendo a pequena ânfora de bavarezas, o obelisco bicolor dos sorvetes matizados; toda a história e toda a mitologia a serviço da comilança.

Plantado diante de nós, na calçada, um bravo homem dos seus quarenta anos, de rosto cansado, barba grisalha, trazia pela mão um menino e no outro braço um pequeno ser ainda muito frágil para andar. Ele desempenhava o ofício de empregada e levava as crianças para tomarem o ar da tarde. Todos em farrapos. Estes três rostos eram extraordinariamente sérios e os seis olhos contemplavam fixamente o novo café com idêntica admiração, mas diversamente nuançada pela idade.

Os olhos do pai diziam: "Como é bonito! Como é bonito! Parece que todo o ouro do pobre mundo veio parar nessas paredes." Os olhos do menino: "Como é bonito, como é bonito, mas é uma casa onde só entra gente que não é como nós." Quanto aos olhos do menor, estavam fascinados demais para exprimir outra coisa que não uma alegria estúpida e profunda.
Dizem os cancionistas que o prazer torna a alma boa e amolece o coração. Não somente essa família de olhos me enternecia, mas ainda me sentia um tanto envergonhado de nossas garrafas e copos, maiores que nossa sede. Voltei os olhos para os seus, querido amor, para ler neles meu pensamento; mergulhava em seus olhos tão belos e tão estranhamente doces, nos seus olhos verdes habitados pelo Capricho e inspirados pela Lua, quando você me disse: "Essa gente é insuportável, com seus olhos abertos como portas de cocheira! Não poderia pedir ao maître para os tirar daqui?"

Como é difícil nos entendermos, querido anjo, e o quanto o pensamento é incomunicável, mesmo entre pessoas que se amam!