terça-feira, 21 de janeiro de 2014

RAP e a construção da identidade

1.    Introdução

Nessa pesquisa buscamos verificar a relação do RAP na construção da identidade. Identificar qual a relação desse gênero com o movimento que ele representa em nossa sociedade.
            Determinadas sonoridades e letras nos permitem vivenciar uma serie de experiências sensíveis que envolvem o cenário musical e as trajetórias construídas nos tecidos urbanos.
            Demonstrar como o RAP é usado para expressar uma resistência à realidade vivida e compartilhada pelos seguidores do movimento, uma maneira de não ceder aos problemas gerados pelas diferenças sociais na nossa sociedade.
           Identificar o sujeito inserido na cena musical, e o rap sendo uma forma de mensagem que atravessa as barreiras sociais e acaba se tornando uma voz da comunidade.
A construção de identidade no RAP é uma forma de resistência?

  
2.    Contexto Histórico

O RAP palavra formada pelas iniciais da expressão ritmo e poesia (rhythm and poetry) é a linguagem musical do movimento Hip Hop, um estilo juvenil que agrega outras linguagens artísticas como as artes plásticas, o grafite a dança, o break e a discotecagem.
 Esse gênero musical é fruto de um processo intenso de articulação e reelaboração de influências das mais diversas, desde o imaginário oriundo das culturas africanas que sofreram influências durante séculos com os traços musicais e culturais americanos e europeus, até suas primeiras manifestações no Brasil, se adaptando a realidade das comunidades.
            Oriundo dos Estados Unidos e do Hip Hop, o RAP surgiu no Brasil no final da década de 90 quando tornou-se um gênero musical com certa autonomia. O maior expoente desse gênero é o Racionais MC's que inovaram trazendo uma música de movimento de protesto e combate social.
            O ideal do RAP politizado foi apresentado no dia 25 de janeiro 1988 num show realizado no Parque do Ibirapuera pelos Racionais MC's. Com o surgimento na periferia da cidade de São Paulo (Região do Capão Redondo) esse movimento foi se ampliando com festas de ruas e diversos eventos artísticos. Nessas festas reuniam-se grupos de RAP locais e convidados com o objetivo de se apropriar das ruas com atividades voltadas para a cultura, o lazer e as ações antiviolência.


 3.    Desenvolvimento
3.1.  Sujeito Social
            DAYRELL através de CHARLOT define sujeito social caracterizando-o como parte de um grupo social, mas também diferente de todos como um ser singular. O ser humano não é um dado, mas uma construção. Constitui-se na relação com o outro no meio social a que se insere, com os recursos que dispõem. O ser humano quando nasce herda uma construção de mundo de seus ancestrais, que interfere na produção de cada um deles como sujeito social, independentemente da ação de cada um.
"O sujeito é um ser humano aberto a um mundo que possui uma historicidade; é portador de desejos, e é movido por eles, além de estar em relação com outros seres humanos, eles também sujeitos. Ao mesmo tempo o sujeito é um ser social com determinada origem familiar, que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido em relações sociais. Finalmente, o sujeito é um ser singular, que tem uma história, que interpreta o mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas relações com os outros, à sua própria história e a à sua singularidade. O sujeito é ativo age no e sobre o mundo, e nessa ação se produz e, ao mesmo tempo, é produzido no conjunto das relações sociais na qual se insere" (DAYRELL, Juarez apud CHARLOT 2000, p. 33 e 51).

            O morador da periferia vivencia as mínimas transformações sociais e faz disso seu estilo de vida e realidade, o RAP pode proporcionar a esse sujeito uma maneira de semear seu discurso de resistência, e assim dar voz a sua comunidade. Os rappers estão inseridos em um mesmo contexto social, porem cada um, sendo um sujeito singular, passa sua própria mensagem de consciência social.
            O sujeito homem acaba se tornando um exemplo e uma referência para as pessoas que o cercam, modificando o comportamento coletivo de onde ele está inserido.
3.2.        RAP uma mensagem social
Esse movimento caracteriza-se pela exclusão social do negro e pela ideologia inspirada na autovalorização de suas origens africanas, negando a violência e a marginalidade.  O RAP demonstra o quanto é conflitante para um jovem de periferia abraçar o discurso consciente vivendo situações concretas de extrema violência e desespero existencial.
“Podemos entender o estilo como uma manifestação simbólica das culturas juvenis, que expressam um conjunto mais ou menos coerente de elementos materiais e imateriais que os jovens consideram representativos da sua identidade individual e coletiva.” (FEIXA, 1998).
Os rappers traduzem em suas músicas suas vivências do cotidiano da comunidade com visões de observadores e participantes, tornando-se cronistas e críticos da modernidade. Mais do que apenas narrar também envolvem os jovens em sua mensagem, que transmite força e resistência à realidade da violência, do tráfico e das drogas. O RAP torna-se um movimento de luta que integra os jovens e dá voz a essa outra perspectiva da comunidade. Segundo dicionário da Língua Portuguesa, a definição de resistir é:
“Opor força a força, defender-se: resistir aos ataques do inimigo. Conservar-se firme, não sucumbir, não ceder: resistir à fadiga, à tentação.” (BUENO, Silveira, 1995).

Essa definição traduz a luta do RAP como movimento social que visa incluir os jovens a uma nova realidade onde existe uma perspectiva além da marginalidade.
“Moleque novo que não passa dos 12/ Já viu, viveu mais que muito homem de hoje/ Vira a esquina e para em frente a uma vitrine/ Se vê, se imagina na vida do crime./ Dizem que quem quer segue o caminho certo/Ele se espelha em quem tá mais perto.” (RACIONAIS MC’s, O mágico de OZ)¹.
 O RAP traz para perto dos jovens um exemplo positivo a ser seguido que se opõem ao mais acessível como as drogas (O consumo aumenta a cada hora./Pra aquecer ou pra esquecer/ Viciar, deve ser pra se adormecere o crime (Matando os outros, em troca de dinheiro e fama/ Grana suja, como vem, vai, não me engana.)¹. Outras pessoas que também estão resistindo a essa realidade e não são submissos a ela. Ele proporciona ao jovem uma maneira de expressão escrevendo suas letras e se manifestando quanto aos seus anseios como sujeito social.
Essa cena musical, além de ser um espaço de aprendizagem de relações apresenta–se também como um dos únicos momentos onde podem vivenciar um processo de criação coletiva. Ser capaz de produzir uma obra própria interfere diretamente na autoestima de cada um. Cantar e escrever torna–se uma forma de descargo emocional.
“Não entendo meu país o povo é muito acomodado, país do faz de conta quer viver? fica calado/ Quem não vive pra servir, aqui não serve pra viver, mas pra mim perder a vida é bem pior do que morrer./ Vamos acordar pra vida, o que é isso companheiro?, morrer de pé ou vai passar a sua vida de joelhos?”( LIBERDADE E REVOLUÇÂO, Minha luta).
            As músicas de RAP em geral, assim como a citada, criticam duramente as mazelas dos políticos, os atos arbitrários da policia e a futilidade de certos seguimentos sociais dominantes. Mano Brown, vocalista do RACIONAIS MC’s, se identifica não como artista, pois segundo ele artista faz arte e ele faz arma, se identifica sim como terrorista. Um terrorista que faz críticas contundentes as classes dominantes e uma exaltação do orgulho racial.
Os rappers estão preocupados em passar essa mensagem social para conscientizar a sociedade e por isso “rasgam o verbo”. Além de pretender transformar essa realidade em uma sociedade mais justa e democrática, representados numa cena musical que caracteriza uma manifestação cultural.
             3.3. Cena Musical
            A cena musical possibilita a articulação de experiências globais e locais por meio de circuitos culturais, ocupações sensíveis dos espaços urbanos e projeção de territórios sonoros. Segundo Will Straw, cena musical é "um espaço cultural em que várias práticas musicais coexistem interagindo entre si com uma variedade de processos de diferenciação." (1997, p.494).
            Essa cena musical dentro de diferentes ambientes pode trazer outras formas de expressão cultural no RAP, por exemplo, o break, o grafite, artes plásticas fazem parte desse ambiente reforçando ainda mais a cultura polinizadora que a comunidade oferece.
            São Paulo é a cidade que o RAP se fortalece e tem maior visibilidade, se instalando na periferia da cidade onde a desigualdade é mais nítida. Um dos exemplos práticos é a Virada Cultural que apresenta diversas programações específicas para o público alvo. Artistas dessa cena musical como Criolo, Racionais MC', Thayde, Rappin Hood, Emicida, Kamau, Sandrão RZO, entre outros já reconhecidos, participam do projeto. Caracterizando a importância do Rap como grande influência cultural.
"Dentro de uma cena musical, o mesmo senso de propósito é articulado em meio às formas de comunicação através das quais a construção de alianças musicais e o desenho das fronteiras musicais tomam forma. O modo como as práticas musicais dentro de uma cena se vinculam aos processos históricos de mudança ocorre dentro de uma cultura musical ampla que também é uma base significante do modo como essas formas são posicionadas dentro da cena em nível local. ( STRAW,1991, p. 494)"
           
Os ouvintes se identificam com o discurso proposto pelos rappers, sendo que uma densa parte da sociedade passa pelas mesmas dificuldades, e pelas mesmas angústias. Então essa cultura musical acaba se tornando abrangente e inovadora. A noção de cena musical aponta para um processo de identificação.
 3.4 Identidades
“O conceito de identidade, (...) de modo geral (...), se relaciona ao conjunto de compreensões que as pessoas mantêm sobre quem elas são e sobre o que é significativo para elas (...).” (GIDDENS, 2005, p. 43).
A definição do conceito de identidade é complexa, devendo ser dividida em diversos níveis para uma melhor compreensão. Para Frith, “a música parece ser a chave para a identidade, porque ela oferece tão intensamente um senso de você mesmo e dos outros, de sua subjetividade e coletividade” (FRITH, 1996, p.110), como por exemplo, nas identidades inseridas no contexto do RAP:
- Identidade Cultural, é construída a partir de fatores que se agregam ao longo do tempo como algo que vai além de descendências e que se mistura aos costumes locais, aos padrões de comportamento, a época e suas interpretações. A música é uma forma de nos posicionarmos, nos identificarmos dentro de uma comunidade, dentro da cultura que compartilhamos.  O RAP possui uma cultura própria, a cultura do negro, do excluído, da luta, da resistência e do pobre.
“A identidade tornou-se uma celebração móvel: formada e transformada continuamente em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas culturais que nos rodeiam.” (HALL, 2001, p.13).
            A experiência de identidade é algo único que engloba memorias, lembranças e vivencias individuais que estão relacionadas a mudanças e transformações que envolvem partilhas com os outros. Identidades culturais são possibilidades de inserção de diferentes experiências em uma cultura coletiva.
(...) é provável que os membros de uma mesma sociedade compartilhem as mesmas maneiras de estar no mundo (gestualidades, maneiras de dizer, maneiras de fazer etc.), adquiridas quando de sua socialização primeira, maneiras de estar no mundo que contribuem a defini-los e que memorizam sem ter consciência, o que é o princípio mesmo de sua eficácia. Desse ponto de vista, seria preciso atribuir nuances as concepções situacionais de identidade sem, no entanto, rejeitá-las, afirmando que pode existir um núcleo memorial, um fundo ou um substrato cultural, ou ainda o que Ernest Gellner chama de “capital cognitivo fixo”, compartilhado por uma maioria dos membros de um grupo e que confere a este uma identidade dotada de certa essência (CANDAU, 2012, p. 26).


            A cultura agrega novas tendências com o passar dos anos, contudo “o núcleo memorial” já é assimilado pela cultura compartilhada. No caso do RAP a memória Afro e dos anos de exclusão, realidade que é herdada através das gerações.                     

            - Identidade Geográfica, é formada a partir do espaço e das relações nele existentes e que o caracterizam. No espaço onde se encontram as relações do RAP existe um clima de violência, a presença do tráfico de drogas, as histórias trágicas e também confere o estigma de ser favelado a seus moradores. Todo esse contexto interfere na construção de identidade da comunidade, visto que é necessário lidar com esse cotidiano.
            Segundo Giddens (2002), lugar é um espaço particular, familiar, responsável pela construção de nossas referências no mundo, daí a importância do tecido urbano na formação dos gêneros musicais. Os participantes de uma cena musical como o RAP partilham formas de ocupação dos espaços culturais.
Para Dewey (2010), identificação é caracterizada por uma interação continua dos seres vivos com o meio ambiente. Os participantes de uma cena musical materializam circuitos culturais através não só da circulação de práticas musicais como dos próprios sujeitos que consomem músicas nesses territórios. Fazendo assim da favela o território sonoro do RAP.
            - Identidade Social, é formada a partir de grupos de convívio, através de interesses comuns ou amizades. Por meio da música formam-se relações sociais entre pessoas de mesmo gosto, ambiente e pensamentos. O ser humano se constrói na relação com o outro e essa partilha de vivências influência no que o sujeito social se torna, adquirindo características semelhantes nesse convívio.
            “(...) As identidades sociais marcam as formas pelas quais os indivíduos são ‘o mesmo’ que os outros (...)” (Giddens, 2005).  O RAP fornece a esses indivíduos a oportunidade de união, formando uma consciência representada por expressões culturais, tornando-se algo que fortalece as relações do movimento. “Pela raiz me fortaleço, me alimento/agradeço e represento a resistência/coerência, competência/sem deixar de ouvir a voz da experiência.” (KAMAU, Resistência).

4. Conclusão     

           A música de uma forma geral implica em valores e codificações, que impulsionam seu sentido, apresentando uma linguagem, valores e identidades próprias.
          O mundo da cultura se apresenta mais democrático, possibilitando espaços, tempos e experiências que permitam que esses jovens se construam como sujeitos.
          O RAP representa uma ampla manifestação cultural nas periferias dos grandes centros urbanos, expressando e criticando as mazelas sofridas por essa parcela, em uma grande metrópole que é São Paulo.
         Os representantes do RAP se identificam formando uma luta de resistência contra uma realidade desigual. Eles sentem um elemento de coerência entre si, pela cultura que herdam, pelo espaço geográfico que habitam e pela mesma mensagem que querem transmitir.
            Podemos concluir através da análise que o RAP constitui um movimento social de identidade, valores e de transformação social, criando na comunidade ambientes reais de fuga da marginalidade, onde o indivíduo pode se realizar como um sujeito social ativo. A identificação do indivíduo permite o fortalecimento da autonomia dos próprios ideais de um movimento que está em ascensão na sociedade atual.
            O objetivo é através do RAP transformar essa realidade em uma sociedade mais justa e mais democrática.
           


 5. Bibliografia

Artigos
DAYERELL, Juarez. O jovem como sujeito social. Minas Gerais, nº24, abril/2003
CONTIER, Arnaldo. O rap brasileiro e os Racionais MC's. São Paulo, ano 1, maio/2005
JANOTTI JR, Jeder. ”Partilhas do Comum”: cenas musicais e identidades culturais. Fortaleza, setembro/2012
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.
MOURA, Auro. MÚSICA E CONSTRUÇÃO DE IDENTIDADE. Paraná, 2012.
Livros
DAYERELL, Juarez. A música entra em cena. Edição 1, Minas Gerais: Editora UFMG, 2005.
Músicas
PEREIRA, Pedro. Mágico de OZ. In Mano Brown. Racionais ao vivo. São Paulo: Cosa Nostra/Zâmbia, 2001, CD 6, faixa 06.
PEREIRA, Edílson. Minha Luta. In Liberdade E Revolução. Resistindo a opressão, estado e religião. São Paulo: CD 1, faixa 03.
VINICIUS, Marcos. Resistência. In Kamau. Sinopse. São Paulo: 2005, CD 1, Faixa 05.


 Marina Chiapetta e Gabriela Prado

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